Estava
atrasada havia uns vinte minutos. Sempre o tempo ideal para
reconsiderar. De pé na outra calçada da avenida barulhenta,
enquanto olhava o letreiro de neon,
um filme lhe invadia a cabeça. Ali estava mais uma vez. Quantas
vezes naqueles últimos meses? Ou seriam anos? Já não sabia ao
certo. O tempo perdera o sentido depois daquele desacerto na sua
vida, quando abandonou em fim o uso sistemático dos relógios.
Porque nada mais fazia sentido, nem ela própria, nem a própria
vida, tudo tão sem sentido nos últimos tempos. Nenhum compromisso
nem lágrima, mágoa, tampouco algum sorriso. O tato, a visão, o
olfato, tudo nela se mantinha intacto. Do mesmo modo seguia o seu
coração, ritmado, sem sobressaltos.
Mas
naquela noite estava ali, naquela calçada da avenida barulhenta,
frente a possibilidade de pôr o sangue a ferver. Mesmo se
escondendo, desviando dos homens (e também de mulheres), dos
assovios desconhecidos, das investidas dos colegas, era
constantemente e irritantemente assediada para encontros. Não fazia
força, estava condenada à arte de seduzir. E desde aquele
desacerto, aquele de dias, meses ou anos, fugia de armadilhas. Não
correria o risco de abalar sua saúde coronária, de sofrer
taquicardia, infarto, de ressuscitar, afetar o olfato e a razão. Mas
aqueles vinte minutos, naquela calçada, foram feitos para
reconsiderar. Jamais aceitaria aquela afronta do destino. Trabalhara
duro até ali para despir-se de qualquer necessidade que viesse de
outro alguém. Convivia indolente com as ausências de domingo, o
silêncio no chuveiro, o vazio na geladeira, na mesa e na cama.
E
então, não. Não seria a essa altura, em uma noite qualquer de
descuido que cairia desavisada naquela armadilha. Depois de tanto
tempo e tanto empenho em secar lágrimas, esquecer juras, se livrar
das lembranças dos cheiros, da pele e dos pelos, dos gostos e
temperaturas e curvas e sons e ... agora que já tinha jogado as
caixas no lixo, que já novamente espaço nas gavetas e no armário.
Não seria ali, naquela noite despretensiosa, travestida de propostas
e risos inocentes, beijos ardentes, naquela mesa de bar do outro lado
da calçada da avenida barulhenta.
Não
faria aquelas viagens, nem retratos, não abraçaria aquela outra
família, não se mostraria tão amável e querida, não deixaria
saudades nas tias, nada disso contaria com sua presença nem seu
perfume. Nunca saia bem nas fotos mesmo e, de um modo geral, não
gostava de tias alheias. Não depositaria ali sua energia. Histórias
contadas despretensiosamente em outro pé do ouvido, tirariam de
outra a cumplicidade dos sorrisos embaraçados. Porque já nem sabia
mesmo sorrir e sentia um incômodo no hálito assim tão próximo à
nuca. Os olhares atentos e vibrantes não seriam os seus. Não
sentiria aquela sensação do inesperado, nem o frio no estômago e
as pernas trêmulas. Nada de coração a saltar pela boca, nem do
alívio do próximo telefonema. Não receberia rosa alguma. Manteria
o vaso de vidro para sempre desacompanhado sobre a mesa, no centro
daquele imenso e deserto apartamento.
Não dividiria
finalmente aquela garrafa de vinho no tapete da sala, entre músicas,
risos, lembranças da infância, de delírios e sonhos futuros. Se
embriagava era mesmo sozinha e quando, e só quando isso acontecia,
rolava no tapete, se agarrava às almofadas e, escondida de si mesma
e de luz apagada, dançava atrás das cortinas. Nada
de anéis, roupas enlaçadas no armário e contas, espaços e lençóis
e cães e peixes e fluídos compartilhados. As conversas
intermináveis debaixo do chuveiro, o silêncio acompanhado e
confortável sobre a cama. Nada disso. Menos ainda as brigas inúteis
ou as vitais, e nem mesmo a reconciliação inevitável repleta de
desejo e excitação.
Definitivamente,
ela não vai àquele encontro. Decidiu que desafiaria o destino e não
daria a menor chance para qualquer fagulha de sorte. Seu coração,
vestido, brincos e saltos atravessariam a cidade em outra direção.
Seria rápido, indolor, apático, como nas outras vezes. Um passo
atrás, meia volta e logo dobrava a esquina para abraçar, mais uma
vez, mais uma noite de solidão. O rapaz ainda esperaria alguns
quinze minutos na mesa do restaurante, terminaria seu drink,
iria embora e nada mais. Ela não permitiria que uma inofensiva
primeira noite se transformasse em cobranças, dores e decepções.
Ou, ainda pior, em mais telefonemas, promessas, vinho, rosas e, quem
sabe, a felicidade. Mas com as ruas, as noites e o relógio do
destino não se brinca. São surpreendentes, obstinados, (sacanas!),
incrivelmente pontuais quando se trata de seus estratagemas.
O
moço do encontro estava igualmente atrasado uns vinte minutos e
virava aquela mesma esquina, naquele mesmo instante. Surpreendente,
obstinado, (sacana!) e precisamente pontual para as artimanhas do
coração. Naquela avenida barulhenta, com um sorriso embaraçado,
baixou a cabeça, ajeitou de lado os cabelos e ofereceu-lhe,
despretensiosamente, seu pé do ouvido. Desafiando aquela moça, ele
trazia um buquê de rosas na mão.