quarta-feira, 28 de junho de 2017

O tempo


era uma moça linda a meu ver
rosto fino de pele bem morena
lábios grossos desenhados
sorriso tímido
quando se virou pra mim
cabelos fortes pretos brilhantes
deitados ao meio das costas
uma franja cobrindo o olho esquerdo
com a ajuda da cabeça pendida
e de sorriso tímido quando se virou pra mim
traída pelos fios grossos e pretos
deixou escapar
o olho esquerdo deformado
caído torto derretido
e eu senti uma vontade louca
de beijar aquele olho
uma obra de Dali



quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

O amor não oferece caução (palavrinhas pueris de consolação)



"Mas se a ciência provar o contrário, 
e se o calendário nos contrariar
Mas se o destino insistir em nos separar
Danem-se os astros, os autos, os signos, os dogmas
Os búzios, as bulas, anúncios, tratados, ciganas, projetos
Profetas, sinopses, espelhos, conselhos
Se dane o evangelho e todos os orixás
Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz"
Dueto - Chico Buarque



Você pode querer segurar o passo, ou acelerar, puxar pelos cabelos, pernas e braços. Mas as coisas do amor começam e terminam exatamente no seu tempo. Nem mais, nem menos. De nada adianta correr, se esconder nem procurar. Será bem ali, naquele milésimo de segundo, em plena dança ou na rua em solidão. Só quando for a hora, vai acontecer. Você vai querer garantias, locais e datas. A cartomante vai dizer! Vai fazer mandingas, ajoelhar, fazer rezas e juramentos. Os búzios hão de saber! Buscará nos mapas, em terras longínquas, no infinito astral. As estrelas vão prever! Vai pagar a analista, mergulhar na psique, revelar traumas, buscar na infância a chave para todo mistério. E virão tuas somas e metas, algoritmos e estratégias, virão teus planos. A razão vai definir! E o tempo vai rir de ti. Porque só ali, sem atraso nem adiantamento, é que, finalmente, te será permito saber e sentir.


Dueto - Chico Buarque e Paula Toller


quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Notas sobre pequenas grandes revoluções



A cada evento, sua revolução. A experiência com chás e ritos, mantras e rezas. A estreia no palco. Uma declaração de amor não correspondida. Um diagnóstico recebido. O pedido de perdão. O parto da melhor amiga. A descoberta de um irmão. A pequena cidade deixada para trás. Apenas um quarto como morada. A gestação. O nascimento do filho. O início da mãe. Quando escreveu e publicou. O parágrafo final. A fatalidade de um poema. O emprego confortável deixado pra trás. Uma tarde e um café na casa da missionária. A declaração de amor correspondida. O mestrado depois dos trinta. 

Não exatamente nessa ordem, cada um desses momentos, grandiosos ou banais, foram, na verdade, suas pequenas grandes revoluções. À primeira vista, fatos comuns. Fragmentos de uma vida qualquer dentre tantas no mundo. Mas ela sabe que não. Sabe que ali foram feitas suas pequenas grandes revoluções. Assim o foram porque dobraram sua espinha. Cavaram mergulhos profundos, reviraram o íntimo da sua alma. Tudo de novo emergia. O chão entreaberto, paradigmas estremecidos, uma grande interrogação. Revia a passagem comprada, o itinerário. Refazia a bagagem para descarregar o abstrato, o supérfluo, tudo que fosse excesso. Saía jogando o lixo fora e arrumava gavetas e limpava a casa. Quebrava correntes, erguia as armas, organizava a luta. Abria estradas, derrubava cercas e arrombava portas. Sacudia a mente, deixando cair as folhas secas. Eram momentos de replantio, de semear escolhas, ver brotar novos conceitos. Podia sorrir, chorar, espernear, fazer o diabo. Ou deitar encolhida e rezar sua prece inventada, na luz apagada para dar ouvidos ao coração. Demorava um bom tempo até se alcançar naquela sua pessoa desconhecida. Mas era mesmo questão de tempo e logo diria: “- olá, muito prazer!” Não impunemente, claro. Jamais saiu sem arranhões. Afinal, todo movimento revolucionário deixa marcas profundas. Acontece com os rios, as vilas, os governos e as gentes. Provoca rupturas, destruição de pontes e abrigos. Abre cortes e abismos. Até que o sol chegue, podem ser muitas as noites amargas de solidão. Mas naquele novo cenário, de necessária reconstrução, entendia que toda revolução era a oportunidade de ser melhor. Nunca pretensamente melhor que os outros, mas apenas a melhor versão de si mesma. Com um pouco menos de mediocridade. E nunca lhe foi preciso ir muito longe, bancar grandes viagens, investir dinheiro pesado, alçar elevadas titulações. Nem mesmo tomar decisões prévias, de justas certezas e claras resoluções. Porque, “às vezes, um gesto, uma palavra, um olhar, modificam o nosso rumo.”* E porque é de pequenas grandes revoluções que se faz o pássaro que, ao deixar o estorvo da casca, ainda sem penas, nem imagina que já já vai estar pronto para voar...



*uma frase do Frei Betto que um dia li por aí.

Far Behind - Eddie Vedder




quarta-feira, 5 de novembro de 2014

" O ópio de ser outra pessoa qualquer"



" Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
- Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não em sucederam
- Todas aquelas de que me arrependo e me culpo"
Insônia - Álvaro de Campos


Enquanto o relógio segue capitaneando os minutos, o tempo te arrasta pelo quarto, fazendo de ti esse pobre coitado, prisioneiro dos mil pensamentos. Ideias sem nexo, em desordem, com o cheiro de ontem, se revelam, se rebelam, donas de ti. Impulsos elétricos, vozes, zumbidos te alteram os sentidos. E teus olhos nunca se fecham. O travesseiro de pontas agudas te fere e rasga embora o teu sossego. O ar que comprime teu metro quadrado encerra no teu corpo o peso das vontades desconexas. Imagens, cada vez mais abstratas, agitadas, abusam covardemente da tua condição.

Tem uma aranha que te observa do alto do teto. É o teu voyeurismo do avesso. Agora, o rato é você.

A internet, a TV e até teus livros debocham desse teu estado. Você, (des) governado, que já foi senhor, agora não passa de escravo. Enquanto se vê mergulhado no vazio, teu sono, cada vez mais, escorre por um fio. Lá embaixo, nas ruas desertas, tem mais vida que aí. A cidade, em silêncio, tira gozo até do asfalto e tem mais vida que nesse teu quarto. Enquanto agonizas, os ponteiros irônicos disparam a proximidade do sol. Tuas paredes encolhem, te engolem e mais um dia já chegou.

A aranha já dorme tranquila enquanto sente pena de ti.

Uns goles, uns tragos, hipnóticos, qualquer trégua. Quem sabe uma chance, um meio, qualquer coisa pra te absolver.

Aí perto tem guardada uma flor. Se te resta um pouco de força e coragem, de arrasta e usa. Pode ser por infusão, compressa ou inalação. Vai te devolver melatonina, trazer o sono e encher de endorfina. Mas tem um porém, uma contraindicação: quando te livrar da insônia, levará também a tua solidão ... e isso, eu já não sei se você vai querer.



quarta-feira, 22 de outubro de 2014

outros verões




aqueles morangos das florestas do norte, podia ter sido bom, eu sei. não houve tempo, disso eu também sei. tá, seriam os melhores e mais suculentos morangos que eu provaria na vida. e seria o teu presente pra mim. mas seriam só morangos e aquele seria só mais um verão. não deu, mas haveriam outros verões, ano após ano. por que então não valeram aqueles da caixa de plástico do supermercado mesmo? eram perfeitos pra mim, lindos e saborosos. eu era feliz com aqueles morangos, aqueles que não eram morangos pra você. porque nada era bom o suficiente pra você. nem eu, nem os morangos, nem o verão. tinham muito pesticida, mas e daí? não é só esse tipo de veneno que mata. não eram só morangos pra mim. eram também afago, carência, até. eram carinho e afeto. mas viraram estrago, um objeto incômodo ocupando espaço na geladeira. assim como aquele verão, que também não foi bom pra você. mesmo com meus presentes e minhas surpresas e eu, não foi perfeito o bastante pra você. eu não fui perfeita o bastante. a última caixa de morangos azedou sobre a pia. já faz tempo, eu sei, mas não quis jogar fora. você já não está mais aqui pra cuidar do lixo, nem de mim. então eu deixei a caixa ali. eu não me importo tanto assim com a sujeira, nem com as coisas imperfeitas. e eles continuam bonitos pra mim. mesmo azedos e mofados continuam sendo morangos e desejo de afeto. eu gosto de saber que ainda tenho os morangos que você me comprou, mas não sei o que fazer com o nosso amor. eu nem sei se restou alguma coisa dele, ou se também azedou. se mofou junto com aquela caixa de morangos. até eu quase azedei. e mesmo não sendo morangos de verdade pra você nem pra mim, acho que era amor pra nós dois. aliás, foi a última coisa que você me comprou. também foi a última coisa que fez a gente brigar. acho que é a última coisa que eu ainda tenho dentro de casa e dentro de mim. um punhado de morangos e uma sobra de amor mofados. eles parecem mais bonitos agora que a casa está vazia. até eu pareço mais bonita sem você. sabe que eu já li que eles são bons em cicatrizar ferimentos? por aqui estamos na época da colheita, mas eu já nem sei se gosto mais de morango tanto assim...


Across The Universe - Strawberry Fields Forever



segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Uma esquina, o atraso, rosas e nada mais




"Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios
No ar."
Futuros Amantes - Chico Buarque 



Estava atrasada havia uns vinte minutos. Sempre o tempo ideal para reconsiderar. De pé na outra calçada da avenida barulhenta, enquanto olhava o letreiro de neon, um filme lhe invadia a cabeça. Ali estava mais uma vez. Quantas vezes naqueles últimos meses? Ou seriam anos? Já não sabia ao certo. O tempo perdera o sentido depois daquele desacerto na sua vida, quando abandonou em fim o uso sistemático dos relógios. Porque nada mais fazia sentido, nem ela própria, nem a própria vida, tudo tão sem sentido nos últimos tempos. Nenhum compromisso nem lágrima, mágoa, tampouco algum sorriso. O tato, a visão, o olfato, tudo nela se mantinha intacto. Do mesmo modo seguia o seu coração, ritmado, sem sobressaltos.

Mas naquela noite estava ali, naquela calçada da avenida barulhenta, frente a possibilidade de pôr o sangue a ferver. Mesmo se escondendo, desviando dos homens (e também de mulheres), dos assovios desconhecidos, das investidas dos colegas, era constantemente e irritantemente assediada para encontros. Não fazia força, estava condenada à arte de seduzir. E desde aquele desacerto, aquele de dias, meses ou anos, fugia de armadilhas. Não correria o risco de abalar sua saúde coronária, de sofrer taquicardia, infarto, de ressuscitar, afetar o olfato e a razão. Mas aqueles vinte minutos, naquela calçada, foram feitos para reconsiderar. Jamais aceitaria aquela afronta do destino. Trabalhara duro até ali para despir-se de qualquer necessidade que viesse de outro alguém. Convivia indolente com as ausências de domingo, o silêncio no chuveiro, o vazio na geladeira, na mesa e na cama.

E então, não. Não seria a essa altura, em uma noite qualquer de descuido que cairia desavisada naquela armadilha. Depois de tanto tempo e tanto empenho em secar lágrimas, esquecer juras, se livrar das lembranças dos cheiros, da pele e dos pelos, dos gostos e temperaturas e curvas e sons e ... agora que já tinha jogado as caixas no lixo, que já novamente espaço nas gavetas e no armário. Não seria ali, naquela noite despretensiosa, travestida de propostas e risos inocentes, beijos ardentes, naquela mesa de bar do outro lado da calçada da avenida barulhenta.

Não faria aquelas viagens, nem retratos, não abraçaria aquela outra família, não se mostraria tão amável e querida, não deixaria saudades nas tias, nada disso contaria com sua presença nem seu perfume. Nunca saia bem nas fotos mesmo e, de um modo geral, não gostava de tias alheias. Não depositaria ali sua energia. Histórias contadas despretensiosamente em outro pé do ouvido, tirariam de outra a cumplicidade dos sorrisos embaraçados. Porque já nem sabia mesmo sorrir e sentia um incômodo no hálito assim tão próximo à nuca. Os olhares atentos e vibrantes não seriam os seus. Não sentiria aquela sensação do inesperado, nem o frio no estômago e as pernas trêmulas. Nada de coração a saltar pela boca, nem do alívio do próximo telefonema. Não receberia rosa alguma. Manteria o vaso de vidro para sempre desacompanhado sobre a mesa, no centro daquele imenso e deserto apartamento. Não dividiria finalmente aquela garrafa de vinho no tapete da sala, entre músicas, risos, lembranças da infância, de delírios e sonhos futuros. Se embriagava era mesmo sozinha e quando, e só quando isso acontecia, rolava no tapete, se agarrava às almofadas e, escondida de si mesma e de luz apagada, dançava atrás das cortinas. Nada de anéis, roupas enlaçadas no armário e contas, espaços e lençóis e cães e peixes e fluídos compartilhados. As conversas intermináveis debaixo do chuveiro, o silêncio acompanhado e confortável sobre a cama. Nada disso. Menos ainda as brigas inúteis ou as vitais, e nem mesmo a reconciliação inevitável repleta de desejo e excitação.

Definitivamente, ela não vai àquele encontro. Decidiu que desafiaria o destino e não daria a menor chance para qualquer fagulha de sorte. Seu coração, vestido, brincos e saltos atravessariam a cidade em outra direção. Seria rápido, indolor, apático, como nas outras vezes. Um passo atrás, meia volta e logo dobrava a esquina para abraçar, mais uma vez, mais uma noite de solidão. O rapaz ainda esperaria alguns quinze minutos na mesa do restaurante, terminaria seu
drink, iria embora e nada mais. Ela não permitiria que uma inofensiva primeira noite se transformasse em cobranças, dores e decepções. Ou, ainda pior, em mais telefonemas, promessas, vinho, rosas e, quem sabe, a felicidade. Mas com as ruas, as noites e o relógio do destino não se brinca. São surpreendentes, obstinados, (sacanas!), incrivelmente pontuais quando se trata de seus estratagemas.

O moço do encontro estava igualmente atrasado uns vinte minutos e virava aquela mesma esquina, naquele mesmo instante. Surpreendente, obstinado, (sacana!) e precisamente pontual para as artimanhas do coração. Naquela avenida barulhenta, com um sorriso embaraçado, baixou a cabeça, ajeitou de lado os cabelos e ofereceu-lhe, despretensiosamente, seu pé do ouvido. Desafiando aquela moça, ele trazia um buquê de rosas na mão.


Futuros Amantes - Chico Buarque


***

Esse post vem sob encomenda. Andaram sentindo falta de mais amor por aqui. E tinham razão.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Um plano para chorar





A tempestade passou. Veio de longe, com previsões de tornado até o amanhecer. Seu estrago foi grande. E você fez planos. E eu bem sei que você não gosta de planos. Mas vinha uma tempestade. E vinha fazer estragos.

E quando ela chegou e você pôde chorar, não impediu esse rio de sal a escorrer pelo pescoço, a encharcar a pele levando com as águas as dores da tua alma. 

Eis teu plano para chorar.
Não fechou a casa, nem escavou buracos. Não procurou abrigos, não se guardou (e eu bem sei que você se esconde). Quando o rio insistiu em correr seu curso natural, aceitou seus desígnios. Deixou que o vento gélido lhe cortasse o rosto e lhe cobrisse de soluços e suspiros e empurrasse toda a água a levantar telhados, arrastar casas e vidas e gente. 

Enquanto a tempestade desabou e a correnteza lhe escorreu na pele, pela face, pescoço, inundando a clavícula, por entre os seios até o umbigo, lhe carregando para junto dela, pensou em tudo que era levado, destruído e lavado. Não evitou (e eu bem sei que você se esquiva). Aceitou, em quietude, os seus propósitos. 

E depois, só depois que você pôde chorar, e que o céu azul se abriu e o sol voltou e esse rio secou, pôs-se a caminhar por entre telhas, cacos, entulhos e lamas, a procura de abrigo e de um amigo. A buscar nos escombros os restos da tua alma perdida, para então recomeçar. Mas só depois que você pôde chorar (e eu bem sei que você nunca chora).